Adaptação: Não Vives Pela Metade

Adaptação: Não Vives Pela Metade

Possivelmente já tiveste a experiência de contemplar a chuva cair, no meio do seu dia. Certa vez, eu vive esta experiência de ver a chuva cair: eu abrigo-me num lugar seco e por uma fresta, ou uma janela, devido ao distanciamento adequado, que me assegura não ser respingada de água, assisto lá fora, a chuva cair. Percebo o volume de água que cai, que pode ir empoçando o chão, ou percebo a água sendo absorvida pela terra seca. Posso perceber a dinâmica, se são pequenos pingos de chuva, macios e sem pressa a cair do céu, ou uma cachoeira torrencial, a jorrar do alto. Posso até sentir também, o cheiro de chuva, o cheiro de pequenas partículas de água que tocam o solo e se espalham no ar, umedecendo e perfumando todo o lugar.

Está acontecendo, a chuva está nesse momento sob a minha cabeça, estou lá nesse mesmo lugar, onde a terra, as plantas, as ruas, são lavadas pela água. Todavia, não estou lá na experiência, estou ausente do aqui e agora. Abrigo-me daquilo que está acontecendo, para uma autoproteção, impedindo que eu seja molhada pela chuva que cai. Vivo, mas não me permito viver. Não sou tocada e nem transformada pelo agora. Não quero deixar o meu estado de seca, porque tenho medo do que possa vir acontecer, se eu der um passo para fora do abrigo. E se eu molhar, como irei me secar? E se eu me resfriar? E se eu me sujar? E se essa roupa estragar? Resisto bravamente a não me arriscar no desconhecido. Espero a chuva cair, e pode ser que, até resmungo da chuva, por ela me ter impedido de cumprir o meu planeamento para o dia. Sigo o meu dia, a chuva caiu, e o momento passou, nunca saberei o gosto, da vivência de ter me deixado ser molhada pela chuva. Nunca saberei a sensação, de como seria cada pingo de chuva, tocando minha cabeça, escorrendo pelo meu corpo, a sensação fresca nos meus cabelos, o gosto da liberdade e a água envolvendo-me por inteiro. Este momento único, passou!

Queres passar pela chuva ileso, podes ver a chuva, imaginar como seria, mas nunca saberás a real vivência de estar bem ali no centro, do acontecimento do agora. A tua autoproteção e desejo de te manter incólume, te rouba a chance de viver por inteiro. Permaneces intacto, mas congelado. Vives, mas não podes viver. Quantas vezes na tua vida, deixas de viver tua própria experiência? Não te deixas ser tocado pelos acontecimentos, não te sujas por onde passas, pelas pessoas que se cruzam contigo. A vida está passando por ti, mas continuas a te abrigar no lugar seguro, continuas não te sujando pelas experiências do agora, tristes ou felizes, unicamente pelo desejo de te manter seco. Adaptar-se não é permanecer igual, resistindo às adversidades, crises e sofrimentos. Adaptar-se é se sujar, se molhar, ser tocado profundamente e então permitir que possas mudar. Não há evolução, se ficares ileso. É preciso se colocar bem no epicentro da experiência, mergulhar no amor, ou na dor, deixar-se ser abalado pela graciosa experiência do agora. Estar, mas não sentir, não é viver; assistir, mas não experimentar, não é viver. Vais vivendo tentando proteger-te de não sofrer, deixando de criar expectativas, deixando de investir, deixando de sonhar, deixando de apostar, deixando de entregar teu coração, até que deixas de ser TU. Esse mecanismo não te abstém da dor, mas te impede de ser. Ser tudo o que podes agora, e ser tudo o que deves e podes ser amanhã.

Não se pode ter uma vida pela metade, amar pela metade, sofrer pela metade, arriscar pela metade, aqui só há espaço para aqueles que vivem por inteiro. Sê inteiro, vive por inteiro, não passes despercebido ou intocável, inscreva-te na vida, e deixa a vida se inscrever em ti. Quando chover experimenta caminhar sobre a chuva que cai do céu.

Luiza Orlandi
Psicóloga Clínica

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