A Vida na Estante
No natal, como era de costume, há muitos anos atrás, João nos seus 5 anos de idade, estava a andar em uma loja de brinquedos com sua mãe e se encantou com o carro da fórmula 1, sua mãe tão observadora logo percebeu seus olhos brilhantes a saltar em direção aquele carrinho. Pronto, não demorou muito e em menos de um mês João recebeu na tão esperada noite de Natal, a Ferrari que tanto sonhava, ele ficou dias e dias desejando ter aquele carrinho para si. O carrinho era perfeito, João nunca havia tido um carrinho tão lindo, cheio de detalhes, com rodas perfeitas, parecia uma Ferrari em miniatura. Mesmo João sendo tão pequeno, ele tinha uma ideia do quanto aquele carrinho custara, seus pais normalmente davam carrinhos mais simples. Mas nessa noite, era especial, sua mãe e seu pai estavam cheios de orgulho ao entregá-lo o presente, diziam “você merece filho”. João quase não acreditou quando abriu o embrulho e estava lá o carrinho tão vermelho que brilhava, João abraçou o carrinho, beijou seus pais, foi ao seu quarto e colocou o carrinho em sua estante.
Todos os dias João acordava, via o carrinho na estante dava um sorriso e ia brincar com os outros carrinhos mais simples e mais baratos. Alegrava o João de saber que estava lá, aquele carrinho tão lindo, era totalmente dele. Com o passar dos dias, João nem olhava mais para o carrinho em sua estante. Já sabia que estava lá, e logo ia brincar com os outros que tinha. O pais de João pensaram que ele nem havia lá gostado tanto do carrinho, e mesmo nos anos seguintes podendo comprar outros carrinhos melhores porque iam bem os negócios do pai, decidiram dar outras coisas melhores como roupas, e continuar a dar os mesmo brinquedos a João, porque era com eles que João passava todos os dias a entreter-se.
E assim passaram-se alguns anos, João foi crescendo, e um belo dia a nova ajudante de casa, a qual a mãe de João contratou para ajudar nos serviços domésticos, foi limpar o quarto de João, e por uma infelicidade deixou cair do alto da estante ao chão a Ferrari vermelha de João, ecoou pela casa o som do carrinho se espatifando pelo mármore frio do chão. As peças se desintegram, já estavam ressecadas e oxidadas pelo tempo, não houve tempo de salvar o brinquedo da queda, era como se ele desejasse chegar ao chão. João não demorou a chegar no quarto, ao ver a cena, quase não reconheceu do que aquilo se tratava, precisou de alguns segundos para perceber que era aquele carrinho brilhante e ilustrado que havia se apaixonado na loja de brinquedos. João chorou, mal conseguia catar as peças do carrinho no chão, João chorou por cada pedaço de carro que ele não experimentou, partes do carro que nem havia se dado conta. João chorou, era o choro do menino de 5 anos, que reconhecia agora que não bastava ter, porque ele tinha, mas nunca se permitiu fazer a única atitude que era adequada diante do carrinho, brincar com ele. João se deu conta, que aquele desejo despertado na loja, nunca se realizou, ele tinha algo raro, valoroso e especial em suas mãos, mas havia terrivelmente enclausurado a possibilidade daquele carrinho fazer a única coisa para qual foi criado, servir de brinquedo a alguém.
Preservar foi perder, o carrinho não era uma obra para estar de exposição, o carrinho deveria ter estado no colo de João, nos seus 5 anos brincando naquele piso de madeira, fazendo as rodas se desgastarem. Hoje o chão era mármore, onde sepultou aquela possibilidade nunca realizada, poupada pelo medo de perder, não apreciou a alegria de viver. Até que o João de 5 anos, cresceu, e o carrinho tão preservado, perecia na estante inutilmente.
João poderia chorar, esbravejar, voltar a ser aquele menino de 5 anos e fazer uma birra, poderia culpar a ajudante desastrosa, ou culpar seus pais por não o terem alertado sobre esse momento dramático. Mas João, levantou-se, diante daquela cena, sorriu e agradeceu por aquele carrinho estar em pedaços, ele sepultou a Ferrari, mas não havia ainda sepultado o que ele tinha de mais valoroso e especial, a sua própria vida. A vida poupada é perdida, a vida preservada é perdida. É justamente pela realidade de sua brevidade que a torna tão bela e nos faz um imperativo: VIVA!
Luiza Orlandi
Psicóloga Clínica